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Eles não veem novelas, se enovelam em novelos humanos; não velam só revelam a novela humana em novenas sacroprofanas. Júlio César de Carval...

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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Em Brasília

      Em Brasília, dia desses. Na vinda do aeroporto passamos pelo corredor dos ministérios que desemboca no Congresso Nacional com o seu falo central ereto, sempre pronto para a cópula com as cúpulas laterais. Às vezes vejo também além das formas ovóides, uma bolsa escrotal fiel depositária de uma espécie de sêmen que contamina até os mais puros óvulos com sua mucoviscidose. Cidade costumeiramente com umidade baixa. Imagino muito creme nos movimentos.
      Interessei-me por uma competição de balonismo que acontecia naqueles canteiros centrais que seduzem pela enormidade do espaço, gerando em mim uma sensação de bem estar inexplicável; embora saiba que em caso de manifestações que sirvam para contraditar, o controle nestes espaços é muito mais eficaz. Hoje com o tiro curto dos olhos, ociosos da pergunta e auto confinados, nos assustamos com essas imensidões, espaços vazios ocupados pelos vazios.
      A demonstração dos balonistas findava e já faziam as manobras de descida para o esvaziamento dos balões. O entusiasmo da minha netinha com aquelas coisas voantes fez com que meu filho se obrigasse a estacionar. Descemos para registrar aqueles pedaços de tempo.
      Calor suportável pelo vento que abanava; jogando de um lado para o outro um enorme balão retangular imitando uma bandeira do Brasil com suas inscrições “ordem e progresso”. O exercício de esvaziamento deste balão foi interessante porque, nesse processo, o progresso subvertia e submetia a ordem; e por mais movimentos que o balão executasse no desenchimento a ordem sempre ficava sob o progresso; percebi que o plano de fundo desta ação mostrava o Congresso Nacional, forçando o meu imaginário a pensar quais os prováveis movimentos que nos trouxe até aqui enquanto sócios desse negócio.
      Lembrando que – Ordem e Progresso – inscrição contida neste balão/bandeira era objetivo filosófico de Auguste Comte, positivista do século 19 um dos primeiros a pensar a sociologia. No Brasil esse ideal positivista que culminou com a frase no centro de nossa bandeira nacional teve a sua origem pouco tempo antes da controversa proclamação da República com Deodoro em 1889, e, era capitaneado pelos pensadores Miguel Lemos, Teixeira Mendes, além de Benjamin Constant, um militar, tudo isso lá pelo final do século 19. Mas não pensava o progresso submetendo a ordem, o pensamento era o de viver fazendo com que o outro vivesse também, a conduta teria que ser “O Amor por princípio/A ordem por base/ E o Progresso por meta”.
      O Sr. Comte, quando pensou a ordem e o progresso ignorava que as equações desenvolvidas pela ciência, poderiam também, causar efeitos extremamente dolorosos para o conjunto da sociedade.
      Quando exercito e ficciono o início desse ajuntamento de gentes pensando uma continuidade, fica cada vez mais nítida a intenção: Foi pela ordem. A possibilidade de obter a oportunidade de viver, sem progresso ainda, renunciando a uma liberdade que um possível estado de natureza pudesse permitir, gerou este pacto. Foi pela vida.
      A idéia, boa, era simples; os acontecimentos não podiam privilegiar uma liberdade que submetesse a liberdade do outro, sem preocupação com duração, de ser a mesma coisa todos os dias; haveria que sobrar alguns fragmentos para edição. As coisas tinham que avançar além da razão. Foi um trecho longo, onde a desmistificação deu lugar às sombras da luminância.
      Este pensamento colocado em prática teceria uma rede e suas linhas teriam como objetivo ligar os sujeitos onde a auto preservação dependesse da preservação do outro. Para isso a razão, já iluminada, tortura a natureza e a técnica aprendida neste movimento quebra a magia que impedia.
      Hoje como nos auto isolamos, individualizando a nossa preservação, corremos o risco de desenvolvermos criaturas mortas-vivas e antropófagas que em um dado momento nos devorarão. A síndrome do lume que cega, o homem com um pensamento, mas que não pensa este pensamento e nem o pensamento pensado, só pensa. Esse exercício de só pensar não garante coisa boa para o entorno. Só o exercício da troca de afetos e cuidados faz com que abasteçamos a nossa humanidade, aperfeiçoando-a; diminuindo este risco antropofágico.
      Imprudências só são permitidas nos cantos escuros e profundos do pensamento. Quando estas imprudências se materializam e aliam-se a quebra de acordos e contratos contrariando a lei, fomentam os discursos pela humanização daquilo que já é humano. A busca pela virtuosidade humana é incessante e o insucesso nessa busca nos faz autorizar o aumento da coerção. Mas nos esquecemos que o príncipe que manda está bem distante de ser também o cidadão que obedece. Ficamos então a mercê de estruturas complexas que des-pessoalizam as decisões.
      E o balão desenchendo.
      Lembrei-me do meu netinho Davi Moreno, ele andou vendo alguns desenhos que apareciam Zumbis, Lobisomens e Vampiros; impressionado pergunta o tempo todo: Vovô de que o Vampiro tem medo? E o Lobisomem? E o Zombie? A princípio as respostas eram as que recebíamos na infância; vampiro tem medo de alho, de cruz e água benta; o lobisomem tem medo de qualquer objeto que contenha prata na sua composição; o Zumbi é mais complicado porque dele foi retirada toda a humanidade, ele não pensa, é desprovido de consciência; não existe argumentação para frear sua marcha faminta por carne humana. Os vampiros, por sua vez, sofreram mutações, perceberam que a imortalidade dependia de algumas condicionantes que nem sempre estavam sob controle, por isso a estrutura que os garantia passaram por algumas adaptações. Assim como o sangue foi substituído por um similar químico; o sol também deixou de ser um problema. Estas adaptações os tornaram mais fortes e nada os impede de agir mesmo com a luz iluminando a sua escuridão. Permitindo que gerações e gerações de vampiros convivam naturalmente com humanos sem que esses percebam a sua presença.
      Penso poder dizer a ele, meu netinho, que essas criaturas são lentamente esculpidas por nós mesmos e o entalhe escolhido define a sua natureza. Como nem sempre nos preocupamos com o entalhe descobrimos tardiamente: O medo nos consome além da conta.
      Mas as evoluções – não a dos balões – desta sociedade acontecem de forma muito rápida e o que era resolvido com todas as vozes e presenças, não é mais possível, coisas tiveram de ser incorporadas a esse pacto. Das desordens iniciais para que a ordem fosse algo bom os mecanismos foram aperfeiçoando-se, até a instrumentação criada para gerar o progresso necessário que contemplasse a todos com uma imaginária igualdade de oportunidades.
      Corte seco para o balão; não é que o progresso, mansamente, pousou sobre a ordem no seu esvaziamento. E como sensatez nunca foi combustível para o progresso, ajudamos a criar algo que não conseguimos controlar e sua gula causa a fome de tudo de quase toda totalidade.
      No início, uns poucos espalhados testando o ajuntamento, pensando uma garantia de continuidade; hoje sete bilhões de almas confinadas em alfaviles, alfavelas e infovilas. O progresso engolindo a ordem induz a um super controle, onde a desordem é intima da ordem na execução deste movimento. Os zumbis, convenientemente, habitam as calçadas para a garantia da ordem no confinamento.
      O progresso submete a tudo e a todos quando gestado unicamente pelo viés econômico, não deveria. A economia canibaliza a política e todas as ações são voltadas para acertos entre compadres e amantes; passando de relacionamentos platônicos, ao exercício empírico de corpos entrelaçados acontecidos a luz de velas, em um romance obsceno e silencioso. De flerte em flerte este romance vai transformando-se em uma exibição de voyeurs para voyeurs em um enorme aquário, iluminado com cores diversas, culminando em um grande ménage à trois para nossa glória e delírio.
      Existem parcerias para que voltemos às crenças da medieval idade; construir paliçadas e orar. A mídia massifica a violência diuturnamente; descreve estatísticas aterradoras para aqueles que se aventuram nas ruas. Minha vizinha na Várzea Grande , em Mato Grosso, diz que vai tirar o filho da escola por que viu na televisão que lá em São Paulo, um garoto de dez anos matou uma professora e depois tirou a própria vida, dentro de uma sala de aula. Argumentei com ela; mas São Paulo tem vinte milhões de habitantes, milhares de escolas, estamos a quase dois mil km desse evento, esse é um caso isolado, não se preocupe, não tire o seu filho da escola. O senso comum tem dificuldades na captura através do olhar. E o pedaço de mundo pode se tornar indigesto quando engolido com ingênua volúpia.
      O Estado tal qual o vampiro se adapta as luzes, usando refletores que potencializam seu lúmen remetendo-o aos olhos do cidadão quase sempre desavisado. Holofotes têm que estar sobre a estrutura causando transparência e não voltada para os olhos do observador ou sobre um fundo azul. Temos que questionar o rumo desse clarão; da forma como ilumina termina por justificar a ação de vigília daqueles que por ora habitam os palácios aumentando a opressão, invadindo a nossa intimidade, cerceando liberdades além daquilo que foi autorizado. É como se nós nos abdicássemos da opinião. O Estado é absoluto, têm as nossas procurações e faz delas o que bem entende.
      Como diz um cético, conhecido meu, os cérebros estão dentro de um tanque, imagina-se tudo, até a própria imaginação é imaginada. Falta corpo, calçada, interstícios. Cidade sobre cidade sob cidade, um nomadismo estranho configura essa rota.
      Ordem e Progresso. A lei tem que ser cumprida; só não, se existir injustiça na sua aplicação. Se tiver contemplando a cidade com seus benefícios, o progresso não se dará para uns poucos e a ordem será sempre um componente ativo para o livre movimento dos citadinos.

Júlio César de Carvalho - J

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