Observando uma exposição de fotos que mostrava a Cuiabá antiga, com seus caminhos de burro, ladeados por casas com suas paredes grossas, pé direito alto, cobertas com enormes telhas de barro; quando do fundo do salão ecoa uma voz, “como era bucólica nossa Cuiabá”, pensei, bucólica! Só que em voz alta; incomodei o dono do som, “é... Bucólica” disse ele. Não querendo, mas com uma polêmica já inaugurada respondi que se fosse no sentido da simplicidade daquele tempo até poderia ser, por que em outro sentido seria campestre, rural, mais próximo da natureza natural que não era o caso. E ele "por que não a conservaram desta forma. Poderiam ter escolhido um outro local para assentar o moderno". Pensei, na época não tinham esta forma de preocupação preservacionista; queriam mais era usufruir das tecnologias descobertas, que engendravam mais conforto e agilidade na forma de arquitetar, que aliadas a métodos mais avançados de engenharia possibilitavam construções mais ousadas.
O trecho não era muito acessível até o início dos anos 1970. As estradas eram ruins, o transporte de passageiros e cargas pior ainda. Esse quase isolamento abastecia o desejo de desejar o que vinha de fora, incluindo idéias. E pensar que no final da década de 1950 a partir de Goiânia, ali no Morro do Mendanha, na Campininha famosa, grandes máquinas, gigantescas, abriam o solo para a colocação dos trilhos que demandariam a Cuiabá, mas aí apareceu Juscelino, o bom menino, e deu no que deu. Cinquenta anos em cinco dizia ele; Cuiabá espera o trem a cinquenta anos.
Percebi que o interesse no assunto era criticar os que derrubavam o velho para construir o novo e de certa maneira tinham o aval do município que não legislava sobre a questão com mais rigor. Mas a cidade também imagina-se no direito de experienciar aquilo já assentado fora das suas divisas. Assim como não podemos negar o oportunismo na desconstrução; os “construtores” amigos do financiamento público existem desde o começo do mundo.
Em uma das fotos, hoje seria uma das avenidas mais movimentadas da cidade, existia um enorme corredor de esgoto a céu aberto; dificultando o trafego. Imagino o fotógrafo ao capturar aquela situação; era uma foto denuncia para mostrar o descaso do poder público para com a cidade. Um registro histórico mostrando o problema de uma época e que persiste. Fragmentos como esse sobrevivem ao olhar do curador, ele necessita de revisitações lúdicas para apaziguar a alma e o frame o engana.
A paixão pelo visível é tentadora, mas os mistérios só são revelados com a luz que anuncia, mas nem sempre percebida. Movimentos capturados em frames que congelam um momento único, passíveis de interpretação através de estoques de memória depositados em suportes anônimos que estão em constante deslocamento, às vezes inacessíveis e por isso mesmo cheio de contradições.
O sujeito continuava - então você é a favor da derrubada de todo este patrimônio que representa a memória antiga da cidade? – disse a ele não ter muito gosto por esta tara preservacionista, esse colecionismo antropológico que impede a fuga. Mas que reconhecia a necessidade de armazenar memórias, sem esse comodismo do tombamento que tem efeito contrário; o tempo faz a demolição e depois o poder público emite o documento que legaliza o novo, santa ironia!
Essa encenação de voltar aos primórdios, abandonar vestes urbanas, embrenhar na floresta na vã esperança de encontrar uma aldeia, para nus viverem uma vida em uma natureza natural é pura ficção, assim como é ficcional nosso exercício de imaginar o início vivendo em um estado de natureza, em plena liberdade e por isso mesmo em belicosidade constante. A nossa memória é essencialmente urbana e, por isso, esse movimento dura o tempo de um festival de férias com os filhos. O nu na floresta é só um nu estilizado para ser utilizado em dias de apresentações rituais para divertir e arrecadar.
E ele - moro em uma casa de adobe, aqui no centro, pé direito altíssimo, portas e portais de madeira com mais de 20 centímetros de espessura, piso hidráulico - mas conversa vai, conversa vem, entregou que a casa era toda equipada com o que há de melhor, tecnologicamente, para torná-la uma casa inteligente. Neste caso o discurso não casa com a ação, assim como a casa é só fachada.
Em alguns momentos nos confundimos e elegemos a paisagem como sendo um lugar e o nutrimos com infundadas lembranças, o que me faz perceber que passos rápidos camuflam escamas sobrepostas que descolorem a memória.
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