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sábado, 31 de janeiro de 2015

Deslocamentos: Cidade Confinada.


              
O nomadismo está incrustado, herança dos primórdios; urbanos, mas nômades. Conhecendo outros lugares, onde percebi o valor que se dá ao deslocamento e ao encontro, onde o desânimo não é forçado por instâncias interessadas em causar um travamento para a ação do passo. Coisa que desperta uma sensação de liberdade, quase uma felicidade, imperceptível nos do lugar porque parecem habituados com aquilo, mas transparente para o estrangeiro.
Deslocamento aliado a um posterior encontro, que acontece quando vou de um lugar para outro lugar, de uma praça para outra praça, fazendo um percurso com meu passo, pedalando, patinetando, atravessando jardins; em Belém bairro de uma cidade que visitei ao perguntar a localização de um museu, o sujeito me disse que chegaria ao local depois de percorrer seis jardins. Confesso uma caminhada longa, mas com o passo seduzido pelo desejo da visão, surge a diferença que nos faz quase levitar.
“De volta para o meu aconchego”, pedaço do planeta que escolhi para aprender a entender o meu mundo e os que me cercam fico com um sentimento de incompletude, como se estivessem me negando algo que já deveria estar materializado.
Declaro a minha incompreensão por ter que lutar, ainda, por coisas tão básicas. Quando passeio pela cidade percebo manutenção nos mesmos pontos, os mesmos buracos sendo tapados, as bocas de lobo são sempre as mesmas que não suportam a vazão das águas, a rede de esgotamento sanitário ainda uma ficção no meu trecho, embora sejamos quase um milhão de pessoas, continuamos a usar fossas ou jogar o esgoto em rede de águas fluviais que vão para os nossos mananciais de córregos e rios, ou como em regiões mais afastadas simplesmente deixá-lo correr por calçadas imaginárias. Semáforos que não são sincronizados, faixas de pedestre que quando não existem de fato, deixam de existir porque utilizam materiais inapropriados para sua execução; placas de sinalização depredadas e o poder público não se preocupa com isso, não repõe, não pune; o deslocamento de muitas gentes é feito em carcaças dinossáuricas; projetos que não projetam o crescimento da cidade, parecem feitos para, convenientemente, terem que fazer outro. Não privilegiam formas de mobilidade que poderiam aliviar a cidade de tanto martírio, tais como as ciclovias, os calçadões para quem quiser passear com seu passo. A impressão é que os do paço não se preocupam com o passo; preferem os gabinetes e seus corredores onde negócios mais interessantes são tratados.  
Gosto das calçadas, das praças, a facilidade para realizar o movimento de ir e vir, gera uma sensação de felicidade, onde de repente posso intuir e até pensar em liberdade. Mas existem motivos para pensar que não me querem trafegando nas suas sinuosidades. Tenho comigo precauções para me embriagar com a variedade dos desenhos dispostos para meus pés navegarem com tranquilidade; existem dificuldades cada vez maiores, como se estivéssemos em uma corrida de obstáculos; são postes mal colocados, buracos, bocas de lobo esfomeadas. Quando imaginamo-nos livres para o passo, eis que surgem as mesas e cadeiras; banquinhas e barraquinhas; carros e motocicletas estacionados sem nenhuma cerimônia, nos empurrando para o asfalto.  
Para atravessar a rua é um sufoco, não tem faixa para pedestre, quando tem, os insufilmados bólidos não estão nem aí, como no desenho animado andam com um carimbo para marcar o próximo atropelamento.
E aquela paradinha para recuperar o fôlego, o olho busca uma ilha na imensidão do concreto que nos faça esquecer um pouco o turbilhão urbano, mas onde está?  
Depois desta maratona alcançar uma praça seria um derradeiro e mínimo desejo; quando supostamente avistamos uma, não é exatamente uma praça, nos deparamos com equipamentos destruídos, falta iluminação, a mais básica das limpezas, aquela varridinha, uma aparadinha no mato, nem pensar, inexiste. As calçadas, as praças quando existem, desta forma, passam a ser ocupadas por alguns.
Nas conversas sobre a Cidade e seus movimentos, percebo uma preocupação excessiva quando assuntamos para o desejo de bolinar o vento, perceber o deslocamento das nuvens, sentir os suores e o cheiro das coisas; a noite namorar estrelas e seus mistérios, saber a resposta da lua aos urros interiores. Só percebo desânimo, medo. Os espaços estão aí para serem ocupados. Aceitamos muito morna e mansamente sugestões para o autoconfinamento físico e mental
Nunca clamamos tanto; o Estado é necessário, mas ocupado por governos medíocres é como se não existisse, transforma-se em um escritório de representações comerciais; desta forma começo a compreender a motivação que norteia o impedimento para o meu, o nosso deslocamento: Só controle, confinado e triste perco o ânimo, a motivação, passo a enxergar zumbies, até mesmo onde eles não existem ou ser um.  
Tornar oca uma Cidade que pulsa parece ser a habilidade do momento. Ocar para não preencher os vazios das gentes. Estratégia criminosa para facilitar o controle, ao mesmo tempo em que preenche os bolsos já cheios daqueles que executam com certa maestria esta tarefa. A Cidade é barbaramente violentada quando incapazes ou mal intencionados extirpam das suas entranhas o talento nato para gerar e contemplar a cada um o seu quinhão de felicidade.
A Cidade que eu moro ainda pulsa, quer dar o passo, flerta com as gentes, tenta de alguma maneira chamar à atenção para a violência que cometem com ela, mas estão todos em uma espécie de torpor, desinteressados, autoconfinados entre muros e carnes presidiais. Parece, esqueceram-se que autopreservação, a da espécie, não pode ser uma coisa individual só acontece se cuidarmos, também, da preservação do outro.
Neste mundo onde tudo é ida, a ética do arquiteto sucumbe à estética comercial de mercado e os não lugares proliferam para que possamos praticar a arte dos desencontros.


Júlio César de Carvalho Jota

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