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Eles não veem novelas, se enovelam em novelos humanos; não velam só revelam a novela humana em novenas sacroprofanas. Júlio César de Carval...

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sábado, 13 de março de 2010

Menina

      Final dos anos 1980 morreu uma cadelinha aqui de casa, digo cadelinha para minimizar um pouco o peso da minha consciência, na verdade uma grande alma se foi.
      E Eu tal qual um Deus, com meu olhar oblíquo observava a agonizante morte lenta daquela figura, como que decidindo de que modo e quando deveria acontecer.
      Talvez empolgado com a minha DSL ou inebriado com o meu Home teather (ah!), não sei, sonhando quem sabe com uma câmera digital de última geração para fazer minhas imagens, realizar meus roteiros, olhava o desfile diário da Menina, era assim que ela se chamava, com sua elegância putrefata, seus olhos como que enevoados, nem fechados, nem abertos, vidrados eu diria para não enxergar tanta cegueira.
      Nascida, conseqüência da paixão que o Beingi nutria pela Polikin. O Beingi era um garanhão, peludo e tarado e a Polikin fazia o tipo recatada, mas que tremia quando via a proximidades daqueles pelos. E isso aconteceu no século passado nos idos de 1988.
      Bom ela, a Menina, sofreu um acidente. Muito esperta, ainda pequena, tentou se livrar dos meus braços deu um salto, mas sem experiência ainda, creio que o salto tenha sido maior que a perna. Sendo castigada então, a inocente, com uma fratura exposta. Essa Menina chorava violentamente a sua dor; perplexo, afinal tirando alguns braços quebrados que eu tive na infância, jamais imaginei uma fratura exposta. Corremos todos, a família inteira e até os vizinhos a caça de uma solução que era óbvia, hospital com ortopedista (?). Rumamos para um. O Plantonista nos atendeu com aquela calma peculiar, irritante, usando aqueles chavões tão apropriados para a ocasião enquanto a Menina se esgoelava de dor naquela salinha de pouco mais de10m², cheia de outras enfermidades. Chega o doutor, Carlos era o nome dele, nessas horas a gravidade da situação nos concede o privilégio de ser o primeiro da fila... Se tiver com o cheque pronto. Nesse momento a Menina já estava nos braços do Mariano que, na época, tinha um jeito especial para acalmar este tipo de situação. Carlos, o doutor, examinou e concluiu que a saída era colocar um pino de aço ou ferro, sei lá, não me lembro mais. Internamos a Menina, jovem, desesperada, fraturada, sozinha e sem possibilidades de visitas.
      A danada tinha que fazer repouso, mas quem a segurava, não tinha como. O tempo foi passando e sei que aquela fratura calcificou de tal forma que deu novos contornos a perna da Menina.
      Até então os netos ainda não os tínhamos e aquela turma reinava sossegada, o Juliano Moreno que o diga.
      Um dia, de sopetão, Juliano em alto e bom som, junto com a Cláudia, lá no quarto, sentados, juntinhos, em uma pequena poltrona mandaram, na época, um torpedo: “... Papai! Você vai ser vovô...”. Isto também é coisa do século passado.
      Sei que a Menina adotou essa idéia de pronto, assumindo ali, naquele momento, a barriga de Cláudia, zelando a partir de então do conjunto divino em formação.
      Nasceu Cauê e junto com ele um cuidado excessivo tirou da menina o direito de continuar aquela ação de purificação que ela exerceu todo o tempo que durou a gravidez. Relegada a ultima expressão, agora, do nada, deprimiu a coitadinha. Sem pomadinha e sem refresco. De princesa a uma caçadora de ratos, numa piscadela, num estalar de dedos, caçadora sim, porque a partir daquele momento, deserdada , abandonada, teve que se defender e o mundo lá fora para quem não o conhecia é uma verdadeira guerra, com batalhas diárias, com aprendizado obrigatório, pois disso dependia a sua vida.
      Confesso que a partir daquele momento coisas aconteceram e se eu tivesse que definir o comportamento da Menina e de seus companheiros os chamaria de sobreviventes. Amigos fiéis, mesmo traídos, ignorados e desrespeitados.
      Os últimos momentos dessa criatura foi de uma grande guerreira, mesmo com as suas feridas expostas, deu-me uma última chance e com o olhar de sua alma eu pude perceber que ela me perdoou.

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